O simples fato de esta ser uma pergunta que nós, adultos, fazemos, já atesta uma falha essencial no nosso currículo. Cada criança saudável é capaz de navegar seus sentimentos, antes mesmo de saber nomeá-los. Não estou sugerindo que a gente saia por aí chorando e berrando desesperadamente ao menor sinal de dor ou raiva ou desconforto, mas em algum lugar do caminho, ao invés de aprender a lidar com nossos sentimentos (de uma forma melhor do que disparando pra todo lado), nós fomos condicionados a reprimi-los.
No passado isso acontecia de formas mais óbvias… “é feio ficar brava”, “menino não chora” e algumas outras formas de repressão que poderiam chegar ao extremo de violência física por parte dos pais ou cuidadores principais. Essas formas antigas infelizmente ainda acontecem, mas há também algumas formas modernas, disfarçadas em pacotes bem-intencionados, que acabam criando informações sutis no sistema ávido-por-aprender da criança sobre “emoções erradas”. Não é minha intenção aqui discutir maternidade, paternidade ou a educação das crianças (ainda que isso seja muito importante), meu foco aqui é em explorar os resultados desta programação nas nossas vidas adultas.
Funciona mais ou menos assim: eu, criança, sinto raiva e a expresso. Através da reação do adulto ou adulta que cuida de mim (que pode ir desde violência física até a retirada de afeto, que é igualmente difícil para uma criança suportar) eu entendo que não é apropriado expressar raiva. Como é um sentimento que continua acontecendo e me envolvendo, eu tenho essa experiência repetidamente, de sentir, expressar e ser reprimida até que eu aprenda a fazer o serviço de reprimir a mim mesma, o que me “salva” da ameaça da rejeição pelos adultos de quem eu dependo. E eu passo a repetir esta auto repressão consistentemente até que se torne um hábito e a partir daí eu passo a reprimir minha raiva automaticamente, em qualquer situação – tornou-se um padrão.
A falha nesta equação é que a raiva não vai parar de acontecer pra mim, então, toda vez que eu a sentir e reprimi-la, onde ela vai parar? De acordo com a teoria Reichiana, de onde muitas escolas de terapias orientadas para o corpo como a Bioenergética derivam, esta energia é mantida no corpo, em forma de tensões crônicas. Estes lugares contraídos no nosso corpo não permitem o fluxo de líquidos, energia e emoções. A própria torneira que se fechou para a raiva agora se fecha também para alegria, amor, prazer. Uma torneira serve para todos os sentimentos. E, ao fechar a torneira, a vida fica muito seca.
Como a gente percebe estas tensões crônicas? Algumas delas você pode sentir no seu corpo, agora mesmo. Frequentemente nós sentimos alguma dor direta ou sensação de tensão nos ombros, costas, pernas, etc. Estas que a gente consegue perceber são a ponta de um iceberg que a gente carrega. Tensão escondida em áreas mais internas levarão a várias doenças e, num nível social, nós estaremos sujeitos a muitas distorções em nossos relacionamentos, afinal, sentimos uma coisa e expressamos outra, dando margem a desentendimento, falhas na comunicação e des-conexão.
Outro elemento nesta equação de reprimir os sentimentos é que a força da vida (abençoada seja!) está sempre tentando se manifestar na gente, então ela vai empurrando mais e mais forte para que a torneira abra de novo e o fluxo vital seja liberado. Em reação a isso nós desenvolvemos formas mais fortes de “controlar” nossos sentimentos, desconectando deles. Como uma brincadeira de esconde-esconde sem-sentido, nós usamos qualquer método disponível para “fechar os nossos olhos” para o que estamos sentindo: drogas (lícitas ou ilícitas), internet, comida, compras compulsivas, sexo, exercícios físicos, e por aí afora…
O fato é que cada sentimento nos dá alguma informação sobre o que está acontecendo com a gente, especialmente sobre algo que precisamos. Se nós crescêssemos aprendendo a, ao invés de reprimir nossos sentimentos, ouvir o que eles estão tentando comunicar, nós desenvolveríamos a maturidade para encaminhar aquela energia da raiva, da tristeza e até do medo de uma forma coerente com nossas necessidades. Uma vez que isso não aconteceu lá atrás, precisamos consertar essa falha no currículo.
Consertando a falha
Para iniciar esse caminho precioso de recuperar nossa capacidade de sentir e aprender a lidar com nossos sentimentos, primeiro precisamos lidar com toda a energia emocional estagnada no nosso sistema. É um porão inteiro cheio de raiva, dor, medo e até alegria, tesão reprimidos durante toda nossa vida. Mover esta energia leva a estagnação a um fim, permitindo não só o fluxo dos sentimentos, mas de energia, da vida em si. Existem muitas técnicas de expressão emocional (emotional release) que ajudam este movimento a acontecer. Para nomear algumas: Meditações Ativas do Osho (especialmente Meditação Dinâmica, Meditação No Mind, Meditação Kundalini, Meditação da Rosa Mística, The Inner Child Meditation), Flushing, Humaniversity AUM Meditation e outras formas catárticas de expressão tais como bater em almofadas, dança catártica, etc.
Também há escolas de terapias que trabalham com expressão emocional, acrescendo a ela o processar e integrar a informação que surgiu (Bioenergética, Terapia Reichiana, Five Rhythms, TRE, Terapia Primal, Biodanza, entre outras).
Mas a expressão emocional é o início da jornada, não a resposta à pergunta “o que fazer com meus sentimentos?”. Lembre-se que esta primeira parte diz respeito a recuperar aquela capacidade que tínhamos quando crianças, de acessar nossos sentimentos e expressá-los, permitindo que nossos corpos se autorregulem, através de um fluxo livre de fluidos, energia, vida. A ideia não é que nos tornemos crianças no que se trata de sentimentos… Como eu mencionei, os sentimentos estão nos comunicando algo, então precisamos aprender a ouvir e compreender a informação. Um segundo passo é necessário, de dar as boas-vindas e integrar os sentimentos. Não há necessidade de correr para uma almofada cada vez que sentimos raiva e, de fato, uma vez que tenhamos recuperado o fluir com nossos sentimentos, isto se torna contra produtivo.
Então, o sentimento está lá. Ao invés de tentar se livrar dele, nós lhe damos as boas-vindas, e sentamos com ele para uma xícara de chá, como um hóspede desejado. A esta altura desacelerar é fundamental. Aquietar o suficiente para que nossa mente se cale e possamos ouvir o sentimento, sem qualquer ação, nenhum movimento de nossa parte. Se conseguirmos estar em silêncio o suficiente, podemos acessar informação preciosa, e aí é que a energia do sentimento se torna combustível para uma ação conectada. Porque aí você está consciente da necessidade ou situação a que o sentimento estava apontando.
Frequentemente a raiva nos fala sobre algo que precisa mudar na vida da gente ou até mesmo numa escala maior, social, política ou global. Ao invés de evitar a raiva ou jogá-la fora para sentir um alívio que não vai durar muito, pois as causas da raiva não foram reconhecidas, a gente a ouve deixa que ela nos leve à ação coerente, que vai ser abastecida pela energia do sentimento, acessando a Potência. Existe uma enorme diferença entre a ação vinda da raiva e a ação vinda da Potência que surge quando integramos a raiva. A primeira contribui com o problema (gera karma) e a segunda conecta com o fluxo da vida, amor e sabedoria, de onde soluções e milagres estão disponíveis.